28.8.07

 

Saudação a Eduardo Prado Coelho



No passado sábado, 25 de Agosto de 2007, quando, de manhã, me deslocava de automóvel, para fim-de-semana, ouvi, na Rádio, a notícia da morte súbita de Eduardo Prado Coelho, de 63 anos de idade, figura de intelectual muito presente na Comunicação Social, onde dispôs sempre, pelo menos, ao longo dos últimos três decénios, de múltiplas tribunas, todas de forte visibilidade.

Depois de uma fase extremamente crítica da sua saúde, de que parecia ter recuperado, eis que a traiçoeira gadanha lhe ceifou toda a natural Esperança, aquela eternamente desejada companheira que nos vai animosamente impelindo na nossa caminhada, rumo a um fim antecipadamente conhecido, mas que sempre pretendemos prorrogar.

Muitas vezes dele discordei, algumas até expressamente o critiquei aqui, neste mesmo fórum, não porque lhe não reconhecesse méritos relevantes, mas porque a sua multímoda presença opinativa o levava para caminhos que lhe deviam impor certa contenção judicativa.

A última polémica em que me lembro de ele ter intervindo, quanto a mim, desacertadamente, ao lado do sociólogo Boaventura Santos, contra o físico António Manuel Baptista, foi na chamada «guerra das ciências», atrasada em Portugal, como quase tudo do foro cultural ou científico que aqui chega e, mesmo assim, de curta duração e limitada extensão participativa, não obstante a já significativa comunidade científica do País.

A falta de interesse em debater assuntos culturais ou científicos em Portugal, pelo único prazer de contribuir para o esclarecimento dos intervenientes e da comunidade, é antiga pecha e não se tem avançado nada neste campo, nem com o crescimento da escolaridade obrigatória, nem com o aumento do número de estudantes do Ensino Superior, nem com a proliferação de estabelecimentos de ensino dos graus médio e superior.

Parece continuar a existir receio generalizado de emitir opinião que desagrade a alguém. Poucos ousam quebrar esta regra tácita, de procurar passar despercebido ou só manifestar opinião que seja concordante com a de quem possa distribuir futuras prebendas.

Este costume tem efeitos perniciosos em toda a sociedade, porque fomenta o seguidismo, o conformismo e a apatia dos cidadãos, ou seja, fomenta tudo aquilo que contraria a existência de uma comunidade activa, consciente dos seus direitos e deveres de cidadania, com sentido interventivo, solidário e responsável.

Sem este sentido, o sistema democrático perde a sua razão de ser, qualquer ditadura serviria por igual a cidadãos temerosos, apáticos ou conformistas.

Por isso, o desaparecimento de pessoas como Eduardo Prado Coelho fatalmente empobrece o já debilitado ambiente cultural do País, mesmo sabendo que ele é dominado por uma conhecida corrente de gente tida por bem pensante, putativamente de Esquerda, nalguns casos, na verdade, apenas nominal, mas com laços antigos entre si, que ajudam a manter essa aura de pretensa superioridade cultural.

Eduardo Prado Coelho, neste aspecto, estava demasiado comprometido, dando guarida cultural a muito aprendiz ou aspirante a intelectual do nosso burgo, que, só gozando desse tipo de cobertura, por parte de certas figuras influentes, se mantém com pretensão a tal estatuto. Ninguém é perfeito e EPC tampouco o era.

Contudo, manda a tradição latina, de que somos legítimos herdeiros, não dizer mal dos mortos, sobretudo dos recentes, antes relevar as suas qualidades morais, intelectuais e cívicas, as suas virtudes, etc., que, na verdade, Eduardo Prado Coelho possuía, sem precisar da enorme cobertura oficial que de todo o lado o cortejava.

Nascido em cultural berço de ouro, com um pai Jacinto Prado Coelho, Catedrático de Literatura, académico brilhante, rodeado desde muito cedo de imensos livros e bibliotecas, convivendo desde menino com famosos intelectuais, como António José Saraiva, seu padrinho, iria, por isso, dispor de condições sumamente favoráveis à formação e desenvolvimento do seu intelecto.

De resto, saberia aproveitar, com excelente resultado, reconheça-se, todos os factores favoráveis que, nesse sentido, os fados lhe haveriam de proporcionar.

A sua lendária capacidade de leitura, quase omnívora, era comummente assinalada por todos os que com ele conviviam, pessoalmente ou por intermédio dos livros, das crónicas, dos artigos, dos ensaios ou dos colóquios em que era assíduo. Por vezes até, essa sua afamada característica algo nos irritava, já que se excedia nas citações abundantíssimas que fazia, em qualquer intervenção, mais por auto-recreação do que por mero exibicionismo, quero crer.

No que se refere à cultura francesa, sobretudo, era torrencial: nas artes, na literatura, no cinema, na psicanálise, na crítica literária, etc., mostrava uma atenção permanente ao que se passava na pátria de Montaigne e Descartes e, principalmente, daquilo que era tido por moda ou vanguardismo artístico-intelectual, em Paris, onde estanciou largamente, nas diversas funções culturais que desempenhou.

Nenhum outro nosso intelectual, depois de Eça, associamos tanto a Paris como Eduardo Prado Coelho. Não sei se era portador de alguma condecoração do Estado francês, mas se o era, sê-lo-ia de forma inteiramente merecida, pela intensa divulgação cultural francófona que permanentemente desenvolveu.

Como disse, apesar de ter discordado dele inúmeras vezes, tinha-o por figura de intelectual respeitável, que ousa sair dos claustros universitários para vir intervir na ágora, na praça pública, arriscando o seu prestígio na afirmação de opiniões, tomando partido nas mais variadas causas que surgiam, emitindo a sua visão dos problemas quotidianos da sociedade contemporânea, sujeitando os seus juízos, as suas ideias, à crítica dos demais cidadãos.

Tenho, de há muito, esta atitude por deveras louvável. Desagrada-me, particularmente, o predomínio dos públicos sábios mudos, de quem não se conhece o pensamento sobre matérias relevantes da vida do País, mas que, depois, sorrateiramente, vão abichando lugar atrás de lugar, na hierarquia do Estado, medindo palavras e atitudes, alinhando-as sempre com os diversos Poderes institucionais que se aprestam a servir com lealdade estudada.

Estimo muito mais aqueles que intervêm em defesa das suas ideias, agradem-me elas ou não, as manifestam, para que as conheçamos, analisando-lhes os méritos ou os despropósitos, para podermos assim apreciar o seu contributo, desde que sincera e frontalmente expresso.

Sempre isto é preferível, mesmo quando abertamente discordamos do que «vemos, ouvimos e lemos», ao espectáculo da matreirice, da surda ronha concertada com todos os Poderes ou com as figuras que imaginadamente os podem conceder.

Neste âmbito, sim, pode dizer-se, sem receio de errar, que Eduardo Prado Coelho vai fazer-nos falta, a nós portugueses, pouco dados à discussão séria, informada, dos assuntos que verdadeiramente importam na nossa vida e não apenas de atenção dedicada aos tornozelos das vedetas do Futebol, afogadas em dinheiro, que esbanjam sem pudor, na medida da facilidade com que o ganham, embora, em abono da verdade, deva dizer-se que não são os jogadores os culpados da presente euforia, completamente alienante a que assistimos, em tudo o que respeita ao Futebol, de clubes ou de selecções.

Eduardo Prado Coelho foi talvez, entre nós, o que mais se aproximou do modelo de intelectual parisiense, interventivo inveterado, esquerdizante por natureza, irreverente q.b., amigo de causas fracturantes, mesmo das inúteis, capaz de descobrir interesse em qualquer futilidade, valorizando-a com um discurso, um enquadramento eminentemente intelectual, ao jeito de Roland Barthes, de resto, personalidade que EPC certamente gostaria de emular.

No entanto, discutindo sempre, expondo o seu pensamento e submetendo-o a escrutínio alheio, sem fugir à liça. Nisto vai notar-se a sua falta.

Que lá onde se ache a alma erudita deste nosso compatriota, ela descanse em paz, se é que a leitura, sua terrena paixão permanente, nessas misteriosas, hipotéticas paragens, não lhe esteja, afinal, inexoravelmente defesa.

Se assim for, espero que o Bom Deus lhe conceda, nesse ponto, honrosa e justificada excepção.


AV_Lisboa, 28 de Agosto de 2007

PS : Costuma discutir-se se será ou não insubstituível a pessoa de cultura ou de ciência que desaparece. Parece-me, no entanto, bastante ociosa a discussão. Evidentemente que será insubstituível naquilo que era a sua genuína identidade, como acontece com qualquer comum dos mortais. Todos nós, naquilo em que nos tornámos absolutamente distintos dos demais, únicos, na diversidade do Universo, seremos um dia também considerados insubstituíveis, mas, apesar disso, substituídos…Infalivelmente, … ad saecula saeculorum…

8.8.07

 

A Crítica do Comunismo e o Livro de Zita Seabra


Explicação de Reformulação de Artigo :
Tendo em conta a importância do tema e a necessidade de reformular certas passagens do artigo aqui publicado em 17 de Julho pp, volto a publicá-lo, com a extensão um pouco acrescentada, ainda que nada do seu essencial tenha sido alterado.
A atenção que há algum tempo dedico ao tema da utopia comunista e a circunstância de me encontrar em gozo de férias, com o espírito mais disponível para eventuais exercícios de perfeccionismo, noutras alturas completamente arredados do pensamento, explicam esta inusitada experiência.

Oxalá os meus imaginados leitores disponham de idêntica paciência para retomar a leitura deste reformulado texto.

Sei que a blogosfera nutre alguma impaciência para com textos de razoável extensão. No meu caso, porém, porque não posso assumir uma assiduidade semelhante à de outros confrades, procuro compensar certas ausências com a maior extensão de alguns textos que aqui coloco, na esperança de não desesperar os esporádicos leitores, que por aqui costumam passar.

Deixo, por conseguinte, à apreciação desses leitores o mérito do esforço agora empreendido.

Termino, assim, com os votos de Boas Férias para os que as estão fruindo, de paciência, para os que ainda as não gozaram e, de resignação, para os que já as dilapidaram, consolando-se estes com a desejável regularidade das estações do ano, ultimamente muito perturbada, como todos temos comprovado, mesmo se discordando das suas causas: para uns, o aquecimento global, a produção dos gases com efeito de estufa, para outros, a natural manifestação das fúrias da Terra, das inesperadas alterações climáticas, do mal conhecido comportamento do astro-rei, etc., que sei eu de tão disputados assuntos...

AV_Óbidos, 08 de Agosto de 2007

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Artigo Reformulado :
A Crítica do Comunismo e o Livro de Zita Seabra

Há livros que, para além do juízo de valor que deles venhamos a fazer, têm o inesperado condão de estimular poderosamente a nossa consciência. No meu modo de sentir, o livro de memórias de Zita Seabra «Foi Assim» insere-se muito justificadamente nesta categoria.

Tendo merecido já assinalável destaque, por parte da Comunicação Social, como, aliás, seria de esperar, quanto mais não fosse, pela notoriedade mediática da autora, a meu ver, esse destaque permanece, ainda assim, insuficiente, pela dimensão da tragédia que no livro se evoca, mesmo se de forma não exaustiva, por presumível opção da autora.

Acresce que, entre nós, tampouco é frequente que um ex-dirigente comunista revele, com desenvoltura, pormenor e deliberado intuito crítico, a vida interna da organização comunista, carregada de aventuras, dramas e tragédias, quer na situação de clandestinidade, anterior ao 25 de Abril de 1974, quer na posterior, já em plena liberdade, incluindo a da fase revolucionária, abertamente conspirativa, até, pelo menos, ao decisivo 25 de Novembro de 1975.

Durante este período, sobretudo, o PCP entranhadamente acalentou o sonho de realizar a sua canónica revolução bolchevique, como bem percebemos todos os que vivemos, com natural excitação juvenil, esses conturbados tempos políticos.

Afinal, vem, agora, Zita Seabra dizer-nos que esse entranhado desígnio de Cunhal continuou muito para além daquela data, até praticamente ao descalabro da URSS, em Agosto de 1991, na sequência de um mal urdido golpe de comunistas da linha dura, alarmados com a intenção reformista de Gorbatchev, preocupação inteiramente partilhada por Álvaro Cunhal, que sempre encarou com fundas reservas, de indesfarçável antipatia, a chamada Perestroika soviética.

Em Portugal, para esse objectivo revolucionário clássico, reconheça-se, bem terá o PCP trabalhado, aproveitando todas as crises – laborais, económicas, sociais, políticas, militares, etc. – entretanto ocorridas.

De falta de empenho conspirativo, portanto, jamais alguém poderá culpar Cunhal e os seus mais dilectos companheiros. E, lá onde estiverem, os dirigentes soviéticos do seu tempo, esse alto mérito, entre outros, lhe hão-de decerto imputar a seu legítimo crédito.

Devo, contudo, confessar que já não tenho, hoje, a mesma visão benévola acerca das revelações de ex-comunistas arrependidos, já que lhes acho, numas, tibieza de atitude, não atingindo as críticas o cerne do mal, e noutras, a sua notória falta de eficácia, por demasiado tardias.

Compreendo que estas pessoas sintam necessidade de as fazer, em especial, quando se dizem sinceramente penalizadas, supostamente de coração contrito, à maneira dos velhos cristãos, procurando, com a escrita das suas memórias, aliviar a sua martirizada consciência.

No caso português, tendo estas revelações sido tão escassas e, a maior parte delas, de duvidosa verosimilhança, parece justo que festejemos as que, em princípio, pelas provas de coragem política dos seus autores já demonstradas, nos merecem maior grau de confiança, como as de Zita Seabra.

Incomoda-me, porém, a ideia de que os seus protagonistas possam sair duas vezes premiados das suas trajectórias ideológicas, apesar do passivo tão desastrosamente pesado da sua amada causa, com tantas vítimas produzidas, a imensa maioria delas, por completo ignoradas, nos múltiplos, largos e ocultos limbos da História.

Por conseguinte, antes de iniciar a leitura do livro de Zita Seabra, vi com atenção a sua entrevista na RTP 1, no dia 5 de Julho, uma 5ª feira, à noite, no programa de Judite de Sousa, um dos raros programas televisivos que fogem ao actual cardápio de futebol, concursos, mais ou menos fúteis, telejornais conversados, entrevistas entecortadas de cançonetas e de conversas idiotas e, claro, doses maciças de telenovelas, com que as televisões, a pública e as privadas, hoje em dia, nos presenteiam, para nosso suposto desenfado e desejada ilustração.

Zita fizera, logo aí, na entrevista, importantes declarações, que justificariam aprofundamento oportuno, não fora a duração limitada, inflexível do programa.

Por isso, cedi a fazer um pequeno desvio da minha habitual rota de fim-de-semana, na 6ª feira à noite, dia seguinte ao da entrevista, para ir de novo ouvir Zita, na agendada apresentação do seu livro, na vila do Bombarral, no acolhedor espaço do Palácio Gorjão, em que decorria uma modesta mas interessante Feira do Livro.

Apesar de ter chegado atrasado, pude ainda assistir a boa parte das suas declarações, aproveitando a oportunidade para lhe formular duas questões. A primeira delas, para que esclarecesse a razão por que havia dado ordem de desmobilização aos estudantes da UEC, na noite de 24 para 25 de Novembro de 1975.

Interessava saber se tal ordem resultara de eventual acordo estabelecido entre Álvaro Cunhal e o Conselho da Revolução ou com o Presidente da República, General Costa Gomes, ou se ela teria vindo simplesmente da percepção daquele dirigente comunista de que não disporia das forças militares suficientes para sustentar, com probabilidade de vitória, o golpe, entretanto desencadeado.

Zita havia declarado que, segundo a clássica teoria revolucionária comunista, de Lenine, só valeria a pena tentar a revolução armada, com uma expectativa desejavelmente vencedora, quando os comunistas, os bolcheviques, entenda-se, contassem com metade das forças em presença mais um.

No caso, e sobretudo depois da decisiva intervenção dos Comandos de Jaime Neves, contra o Quartel da Polícia Militar, na Calçada da Ajuda, que acabaria por neutralizar esta importante Unidade Militar, de forte pendor revolucionário, e, logo de seguida, com a tomada da Base Aérea de Monsanto, dois feitos rápidos e vitoriosos para as forças não revolucionárias, a sorte das armas, nessa noite, ficaria irreversivelmente ditada.

Estes tão rápidos quanto felizes sucessos militares das forças moderadas terão levado o sagaz dirigente comunista a convencer-se de que não conseguiria sair vencedor do seu mais arriscado lance do famigerado PREC, processo revolucionário em curso, como este histórico período ficaria, entre nós, popularmente conhecido.

Por isso, não terão sido accionadas as Forças de Fuzileiros que estariam preparadas para alinhar com os revolucionários, ao lado dos Pára-quedistas, já desenquadrados, comandados quase só por Sargentos, dado que, praticamente, todos os Oficiais haviam, pouco tempo antes, abandonado aquelas forças sublevadas, as quais, havia meses, contestavam a sua cadeia normal de comando.

Entretanto, mesmo os Pára-quedistas haviam subitamente mudado de campo, reduzindo significativamente o potencial operacional dos revolucionários.

Este episódio, determinante para o curso político dos acontecimentos, mostrou bem que grande parte do enorme barulho pseudo-revolucionário que então se produzia carecia de real sustentação.

Na sua base, preponderava uma tropa indisciplinada, inconsequente, impreparada para alcançar com êxito objectivos militares importantes ou sequer quaisquer objectivos, tal era a desordem em que operavam, após vários meses de generalizado relaxe e desorientação política da maior parte das chefias, incapazes de suster a anarquia reinante mascarada de acção revolucionária.

Do lado dos militares legalistas, moderados, havia algumas forças disciplinadas, mais preservadas do tumulto político que assaltava, um pouco por todo o lado, as Unidade Militares.

Mas, sobretudo, contava este lado com o precioso concurso das tropas do Regimento de Comandos, da Amadora, do Coronel Jaime Neves, que havia chamado, de novo, às fileiras, companhias recentemente desmobilizadas, com experiência de combate, que lhe eram absolutamente fiéis.

Com determinação, desafiando os riscos inerentes às operações desencadeadas, estas forças tornaram-se, nessa noite, factor decisivo nos destinos da esboçada revolução comunista, à maneira bolchevique, ensaiada em Portugal, por Álvaro Cunhal.

Sabemo-lo agora, por Zita Seabra, que Cunhal agira de acordo com os seus projectos revolucionários, longamente afagados, de dirigente comunista internacional, fiel à linha política mais obediente a Moscovo, como sempre se assumiu, em particular nos períodos de crise do movimento comunista internacional.

Lembremo-nos que Cunhal foi dos poucos dirigentes comunistas, de reputação mundial, que apoiaram a sufocação da chamada Primavera de Praga, com a invasão da Checoslováquia, em Agosto de 1968, pelas tropas do Pacto de Varsóvia, inequivocamente sob o comando político de Moscovo.

Tal como já acontecera, na Hungria e na Polónia, as tropas do Pacto de Varsóvia, na sua esmagadora maioria da URSS, encarregavam-se de repor a sujeição geral dos países socialistas do Leste Europeu aos ditames de Moscovo, sempre que as directivas políticas, para o efeito, se revelavam insuficientes.

Outra questão que coloquei a Zita Seabra foi a da sua reacção perante a crítica que certas pessoas lhe fazem acerca da sua proverbial determinação em defender orientações políticas.

Da mesma forma que defendeu, com convicção e coerência, uma doutrina que hoje reconhece errónea e nociva, pode, também agora, encontrar-se a laborar em pressupostos políticos que venham a revelar-se, daqui a algum tempo, falsos ou destituídos de fundamento, o que só uma voluntariedade ou empenho político extremos impedem de o perceber.

Aqui, Zita argumentou bem, evocando a existência de um ambiente democrático, de livre discussão, facto que, em si mesmo, propicia condições para o esclarecimento das ideias, inviabilizando a formação e consolidação de eventuais cegueiras políticas, invariavelmente de trágicas consequências sociais e políticas, para todos os cidadãos, em geral, e não apenas para os que nelas embarcam.

A sessão decorreu assim em bom tom de perguntas e respostas, desinibidas, no geral, sem serem numerosas, longe disso, mas sempre agradáveis de seguir.

Já depois deste encontro, eis que enceto, então, a leitura do famoso livro de Zita. Logo quase no início, na página 37, dou com um erro de interpretação histórico-científica, sobre o contributo de Galileu para a evolução da Ciência. Só o aponto aqui, porque me parece ele um equívoco muito comum entre literatos ou pessoas de cultura predominantemente literária ou humanística, que convém desfazer.

Zita Seabra refere, numa passagem do livro sobre o uso abusivo, por parte dos Soviéticos, do adjectivo científico, a propósito de tudo e de nada, que Galileu havia descoberto que a Terra, afinal, era redonda, promovendo com isso o avanço da Ciência e sofrendo a correspondente perseguição das forças obscurantistas da Igreja. Ora isto trata-se, na verdade, de um equívoco, que denota alguma falta de cultura científica.

Na realidade, a esfericidade da Terra era coisa conhecida havia mais de 2000 anos, pelo menos desde Aristarco de Samos (~310-230 a.C.), e de Eratóstenes (~276 - ~195 a.C.). Este último até calculou, com notável aproximação, tanto mais de espantar pela simplicidade dos meios utilizados, o seu perímetro, chegando a um valor, nas unidades de então, equivalente aos nossos actuais 40 000 km.

Foi esta uma realização de tal forma extraordinária que ainda marcava presença na definição do metro, no tempo da Instrução Primária de Zita Seabra, em que se ensinava – e bem – que o metro correspondia à «décima milionésima parte do quarto do meridiano terrestre».

Como é sabido, o que mais celebrizou Galileu (1564-1642) e definitivamente o incompatibilizou com a alta hierarquia da Igreja, para além das suas descobertas no domínio da Física – estudo dos movimentos e da queda dos graves – e da Astronomia, como a identificação de planetas e seus satélites, as manchas solares, etc., utilizando sempre a sua célebre luneta, foi, sobretudo, a sua reafirmação da teoria heliocêntrica, de resto, também já conhecida desde os gregos clássicos.

Aristarco de Samos, p.ex., já a havia sustentado, como outros sábios, muito depois, a seguir ao Renascimento, a vieram também a recuperar, como Nicolau Copérnico (1473-1543) e Johannes Kepler (1571-1630), contra a teoria geocêntrica, que sobrevivera no sistema de Ptolemeu (~87-150 a.C.), perfilhado pela Igreja, que defendia a posição estática da Terra, como centro do Universo, com o Sol a mover-se em seu redor.

Galileu explicou também os movimentos de rotação da Terra sobre si mesma e de translação em torno do Sol. Daí que se lhe atribua a célebre frase, à saída do seu julgamento, «e pur si muove…», e, no entanto, ela, a Terra, move-se, o que, julga-se hoje não passar de uma lenda, mas que ajuda a perceber a dramática situação vivida pelo sábio.

Claro que nada disto diminui a importância do livro de Zita, que não é uma obra de índole científica, mas tão-somente um testemunho pessoal da vivência trágica de uma das mais sedutoras e terríveis utopias político-filosóficas da Humanidade, dos últimos 150 anos.

Em todo o caso, trata-se de uma incorrecção, que denota certa lacuna na formação de base científica de qualquer cidadão, o que, num século eminentemente científico e tecnológico, como o nosso, convém naturalmente rectificar.

Além do mais, tendo o livro sido lido, amplamente discutido e analisado, segundo a autora publicamente declarou, pelo reputado historiador e arguto comentador político Vasco Pulido Valente, cumpre emendar, numa futura edição, que o livro certamente conhecerá, este lapso, por maioria de razão, de todo inconveniente.

Se eu já tivesse lido o livro, naquela referida 6ª feira à noite, durante a sessão de apresentação da obra no Bombarral, quando fiz à autora aquelas duas aludidas observações, ter-lhe-ia certamente chamado a atenção, no breve diálogo que com ela mantive, para esta incorrecção entretanto detectada.

Tal facto, como disse, em nada desmerece o livro, que, na minha modesta opinião, reputo importante, quer pela sua oportunidade, quer pela raridade deste tipo de revelações, por parte de ex-dirigentes do PCP e até, julgo não exagerar, pela sua surpreendente qualidade literária, num documento que se constitui, desde já, em valioso depoimento histórico, imprescindível para a compreensão de um dos mais turbulentos períodos da nossa história recente.

Outro aspecto em que o livro me parece bastante meritório é no que ele permite aquilatar da verdadeira personalidade de Álvaro Cunhal, figura mítica do comunismo nacional e internacional, que, não obstante, poucos que com ele conviveram e privaram, têm sabido ou querido ajudar a entender.

Bem sei que J. Pacheco Pereira já lhe dedicou, creio que três grossos volumes, que ainda não li, nem, confesso, calculo que logre a paciência suficiente para o fazer.

Para além disso, no que ao mais íntimo da personalidade de Cunhal concerne, julgo não perder aqui muito, visto que JPP nunca conviveu com o líder comunista, nem sequer militou no PCP, coisa que muita gente confunde com a sua passagem por pequenos grupos de militantes marxistas-leninistas-maoístas.

Estes pequeníssimos partidos, em geral de curta existência e diminuta relevância, eram todos muito aguerridos, na sua exacerbada disputa ideológica sobre a pureza da doutrina revolucionária e sobre a forma mais eficaz de derrotar e extinguir o sistema capitalista-imperialista da face da Terra.

Estas coisas que, hoje, ditas assim, quase se nos afiguram fantasmagóricas, quando vemos certos desses ex-revolucionários defender, com aparente naturalidade, as virtudes do capitalismo liberal, da globalização dos mercados, em conjugação com a flexibilização das leis laborais, a facilidade de despedimentos e a necessidade da contenção reivindicativa das classes trabalhadoras da sociedade actual.

Cabe reconhecer quanto, na realidade, os tempos verdadeiramente mudam, «tomando sempre novas qualidades», como já, em magnífico soneto, no distante século XVI, advertia o nosso excelso Luís de Camões e José Mário Branco, de forma soberba, cantava, nesses politicamente tão esperançosos anos 60 do século passado. Especialmente para os leitores e leitoras desse tempo, aqui transcrevo o famoso poema :

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Aliás, no livro, Zita conta também que JPP a terá abordado, no Porto, ainda nos anos 60, quando eram ambos estudantes liceais, com vista à sua entrada no PCP. Tal não veio, todavia, a acontecer, por o haverem (Zita e o inevitável controleiro do seu sector) colocado de quarentena, a aguardar resposta, depois de terem ficado impressionados com o seu vasto conhecimento dos clássicos do Comunismo.

Chegaram até a imaginá-lo um possível provocador que pretenderia infiltrar-se no PCP, então sob forte perseguição da polícia política e continuamente na iminência de ver desarticulada a sua dificultosa actividade clandestina.

São, por isso, muito interessantes os trechos em que Zita vai dando conta de pormenores da personalidade de Cunhal, das suas técnicas de avaliar comportamentos de militantes, das suas formas subtis de insinuação junto deles, de como os impressionava, de como os seduzia, e os repelia também, quando isso lhe convinha.

Todas essas habilidosas manobras de Cunhal eram, no entanto, quando percebidas pelos camaradas, sempre consideradas como efectuadas em nome dos superiores interesses do Partido, vistos evidentemente sob o alto critério vanguardista de Cunhal.

Diga-se, porém, que algumas facetas do estilo de vida espartano de Cunhal ajudavam a inculcar nos militantes aquela sua auréola de herói incontestado da Organização. Com efeito, nada impressiona mais a um esfomeado do que ver alguém rejeitar ou desdenhar da comida.

E aqui teremos de concordar que Cunhal verdadeiramente brilhava, porque se impunha aos demais como exemplo vivo de virtudes, no comportamento que exibia, desprendido de bens, vivendo, quase em exclusivo, nas instalações do Partido, em função do Partido, para o Partido, inteiramente dedicado à sua causa, que, no fundo, correspondia, em absoluto, à dele também.

Daí que Cunhal tivesse ao longo dos anos atraído tanta gente e tivesse até conquistado simpatias em meios ideologicamente bem distantes, se não diametralmente opostos do seu, como entre aquelas senhoras de alta sociedade que o rodeavam, cumulando-o de atenções e simpatias, nas cerimónias oficiais ou nas festas das Embaixadas, como Zita refere, tendo-lhe aí feito incidir o seu olhar sarcástico, de vingança, quando nesses locais ocasionalmente o encontrava, já depois da sua expulsão do Partido.

Também alguns episódios, hoje históricos, das acções da UEC (União dos Estudantes Comunistas), que Zita chefiava, podem no livro ser apreciados na sua bastante fiel descrição dos factos, como o do célebre assalto da UEC a uma importante RGA do Técnico, então um dos maiores bastiões do Esquerdismo em Portugal, que se realizava no Salão Nobre e que foi violentamente atacada, com maciço apedrejamento de toda a vidraça da sua fachada e dos portões do Pavilhão Central.

Infelizmente para os UEC, tamanha ousadia saiu-lhes cara, porque não resistiram à contra-ofensiva dos POP (núcleo azougado de estudantes M-L, não partidariamente alinhados, na sua maioria, embora alguns se inclinassem para a UDP, para o PCP (R) e outros grupos menores de acirrados esquerdistas), coadjuvados por elevado número de estudantes, de largo espectro político, todos então aliados, de coração ou de ocasião, contra a atitude de intolerável arrogância dos UEC.

A estes nada mais restou, senão uma vasta correria em pânico, pelo Técnico abaixo, prolongando-se pela Alameda, até às caves do Café Império, sob uma chuva de pedradas e pauladas, traduzida numa imensa e humilhante sova, que arredou a UEC, por largos meses, daquelas benditas paragens esquerdistas, perdendo aquele órgão do PCP qualquer hipótese de influência no espantoso centro de produção revolucionária, que era, cumulativamente, o IST desses «heróicos tempos».

Zita confessa no seu livro que tinha combinado com o COPCON e com a Segurança do PCP esta acção, para prender ou intimidar os estudantes esquerdistas que repetidamente contestavam, com grande descaramento e eficácia, a pretendida vocação vanguardista do PCP e da sua organização estudantil, a UEC.

Acontece que o COPCON não apareceu e a Segurança comunista se atrasou demasiado, tendo chegado no rescaldo da refrega e, para cúmulo da desgraça, responsabilizado a UEC de haver resistido pouco, por escasso tempo. Esta passagem do livro da Zita constitui uma evocação honesta deste histórico acontecimento, muito próxima da realidade, que pode ser confirmada por quem lá se encontrava.

Pela minha parte, posso testemunhar a sua razoável verosimilhança, tanto quanto a minha memória ainda retém lembranças dos fantásticos episódios, desses agitados tempos de loucura política, subitamente desbridada, num Portugal improvisadamente transformado em palco europeu de toda a sorte de aventuras revolucionárias.

Outro ponto do livro de Zita que feriu a minha sensibilidade foi a descrição do infeliz sucesso ocorrido com a sua companheira na UEC, dirigente da Associação de Estudantes de Medicina de Lisboa, a angolana Sita Valles.

Esta jovem, algo romântica e aventureira, seria vítima de bárbara repressão em Luanda, para onde havia partido, em nova missão revolucionária, no Verão de 1975, pensando ter deixado aqui a Revolução no rumo certo, sob a inspiração do PCP de Álvaro Cunhal.

Sita Valles viria a ser tragicamente conduzida à morte, depois de submetida a intensas sessões de tortura, sofrendo violações sucessivas, em circunstâncias de enorme dramatismo e invulgar desumanidade, que, quando evocadas, não podem deixar de nos infundir sentimentos de viva repulsa e irreprimível indignação.

Sita Valles vivia, na altura do chamado golpe de Nito Alves, em Maio de 1977, com José Van Dunen, de quem já tinha um filho, encontrando-se novamente grávida, quando foi presa.

Van Dunen era um importante quadro do MPLA, com forte afinidade ideológica com Nito Alves, ex-Ministro do Interior do Governo de Angola e destacado dirigente do Movimento, de grande popularidade, tido como figura capaz de disputar o lugar do Presidente Agostinho Neto.

Este fatídico acontecimento verificara-se, pois, na sequência do golpe mal sucedido de Nito Alves, supostamente contra Agostinho Neto, numa luta de facções rivais pelo controlo do MPLA.

Este movimento, vindo da luta pela emancipação de Portugal, era vulgarmente designado como o motor da revolução angolana, então em curso, embora por completo sob a custódia das tropas cubanas, naturalmente, a mando soviético.

A intervenção das tropas cubanas, em favor de Agostinho Neto, acabou por se revelar determinante na sorte do golpe, como, de resto, já o havia sido, na contenção e posterior repulsão da ofensiva das forças sul-africanas, em 11 de Novembro de 1975, na altura da declaração da Independência daquela antiga colónia portuguesa.

A Revista do Expresso, já no início dos anos 90, havia dedicado um extenso artigo ao lamentável caso de inaudita barbaridade, conhecido como o caso de Sita Valles, que o PCP, ao tempo em total cumplicidade com o Poder de Luanda, vergonhosamente silenciou.

Em nome do seu proclamado «internacionalismo proletário», o PCP aceitou como verídicos os factos constantes dos comunicados oficiais do MPLA de Agostinho Neto, afinal, um «poeta sensível», mas de inesperada tolerância para com a sanha sanguinária que então se desencadeou, com o assassínio de várias dezenas de milhares de simpatizantes com o golpe de Nito Alves, muitos deles, todavia, sem qualquer acção ou responsabilidade no mesmo.

Compreende-se que, pelo apreço que Zita sentia pelas qualidades intelectuais da jovem angolana e pela amizade que com ela desenvolvera, Zita lhe tenha dedicado no livro algumas das suas passagens mais tocantes.

Ainda na parte final do livro, que trata do processo disciplinar que o PCP lhe moveu, no autêntico julgamento de carácter de que foi alvo, em diversas sessões plenárias do Comité Central, podem ler-se páginas que nos transmitem, certamente de uma maneira muito elucidativa, o terrível ambiente que ela e outros históricos militantes comunistas terão vivido.

Em especial nos anos sinistros das grandes purgas e processos estalinistas da década de 30 do século XX, estes supostos crimes de dissidência doutrinária eram todos julgados ante os piores tribunais que se pode imaginar, os ideológicos, cujas sentenças raramente admitiam recurso ou apelo e, menos ainda, a absolvição dos processados.

No tempo de Estaline, essas sessões invariavelmente terminavam pela condenação à morte e ao consequente apagamento da memória dos pobres acusados de dissidência doutrinária, cujos nomes e imagens rapidamente desapareciam de todas as fotografias e documentos oficiais do regime.

Sabe-se agora que, mesmo depois da morte de Estaline, tais práticas continuaram a vigorar, ainda que com menor número de vítimas e só definitivamente acabaram, após a extinção da URSS, em 1991.

Nos capítulos finais do livro, faz ainda Zita uma descrição das suas últimas visitas à Rússia, já na fase terminal do Comunismo e, a derradeira delas, já na Rússia de Yeltsin, à procura da sua via democrática, ali onde essa flor débil da Democracia nunca antes vingara, sendo ainda cedo para se saber se vingará.

Nesses capítulos, quando Zita alude a narrativas de vários cidadãos ex-soviéticos sobre as suas desgraças vividas nos cerca de setenta anos de duração do totalitarismo comunista, essas experiências, a meu ver, poderiam e deveriam ter sido confrontadas com aquilo que o próprio PCP dizia e repudiava do Salazarismo.

Este exercício de pedagogia política deveria ter sido aqui oportunamente tentado, para bem se colocar em evidência o que só a cegueira ideológica impedia de reconhecer : o Salazarismo era, nos seus aspectos repressivos, apesar de todos os seus conhecidos desmandos e arbitariedades, um sistema político muito mais benigno que qualquer regime comunista, passado, presente e, apetece dizer, futuro, coisa que a duplicidade de critérios, característica permanente da propaganda comunista, sempre escamoteou, negou ou impudentemente iludiu.

Aliás, Cunhal, num arroubo delirante, frequentemente citado, chegou a apresentar o comunismo soviético como o Sol da Terra, sem que isso tivesse alguma vez beliscado o seu alto prestígio de intelectual brilhante, de que sempre gozou, até quase ao fim da vida.

Penso, por isso, que a reflexão sobre o mal do Comunismo, ideologia que, de início, fora vista como instrumento libertador e redentor de todos os explorados e oprimidos da Terra e, em decorrência, da própria Humanidade, poderia ter ido mais longe no livro de Zita, estando ela, como poucos, em Portugal, em situação privilegiada para fazer essa reflexão.

Poderia, pelo menos, tê-lo tentado de forma mais insistente e consistente. Ainda estará a tempo de ensaiar essa árdua, mas certamente mui compensadora tarefa, ela ou outro alguém que, como ela, haja igualmente vivido com paixão esse grande equívoco político e filosófico do Comunismo, como Pacheco Pereira, por exemplo, que tem reunido notável acervo de documentação sobre o tema, de que é geralmente apontado profundo conhecedor.

Analogamente, Zita poderia ter tentado reflectir sobre a paradoxal benéfica influência que a falta de liberdade, no Portugal de Salazar, teve na construção da aura de heróica resistência dos comunistas à repressão política do Estado Novo, instaurado por Salazar.

As perseguições políticas sofridas pelos opositores a Salazar, sobretudo pelos Comunistas, alvo preferencial da polícia política do regime, ocorreram, afinal, não tanto em resultado de uma luta pela liberdade, por estes empreendida, para muitos deles, Comunistas à cabeça, grandemente instrumental e não travada em prol da mítica e generosa Liberdade guiando o Povo, mas subordinada a um ideal político que logo a suprimia, por coisa supérflua da mentalidade burguesia, assim que se instituia como Poder efectivo.

Infelizmente Salazar, de tanto diabolizar o Comunismo, acabou, paradoxalmente, por contribuir para o fortalecimento do seu mito, especialmente entre os muitos portugueses das classes trabalhadoras, de escassa informação sobre a realidade dos países em que ele se implantara.

Por isso mesmo, durante o largo tempo de duração de um regime cerceador das liberdades, como o de Salazar-Caetano, de parco desenvolvimento económico, de baixos índices de instrução e cultura, comparativamente com aquilo que se registava na democrática Europa coeva, muitos Portugueses se sentiram fortemente seduzidos pelo mito comunista.

Depois, a confusão criada com a pretendida unidade anti-fascista, que a ausência de liberdade facilmente suscitava, permitiu, por outro lado, que as monstruosidades que o PCP trazia no seu seio passassem largamente despercebidas durante todo esse tempo, demasiado tempo, sem dúvida, da anómala longevidade do regime de Salazar-Caetano.

Contudo, para outros compatriotas de Zita, até mais jovens que ela, bastou aquele ano e meio de prática do PCP, em clima de liberdade, ainda que revolucionária, para que muitas dessas taras, a seu tempo percebidas e denunciadas por lúcidos observadores políticos, como, por ex., Raymond Aron e Jean-François Revel, em França, nos livros e inúmeros artigos de imprensa que escreviam e onde muita gente forjou a sua formação política, se tivessem tornado evidentes, levando-os a tomar, contra elas, as devidas precauções.

Só por isso, aliás, é que eu faço elogios moderados ao currículo político de Zita Seabra. Mas já os faço, sem relutância, à forma como, finalmente, Zita Seabra soube enfrentar a realidade e arrostar com a hostilidade da generalidade dos camaradas de Partido, enfurecidos e implacáveis na sua condenação, por sorte, apenas política, dado o enquadramento de «democracia burguesa» em que já vivíamos, em finais dos anos 80.

Acresce que à hostilidade dos ex-camaradas lhe sobreveio a difusa suspeição de muitos outros cidadãos, condição que ainda hoje é bem visível, na forma como, em geral, a apreciam, muito mais agrestes com ela do que com qualquer outro dissidente do PCP, em particular dos que aderiram ao «partido certo», o PS, verdadeiro albergue espanhol de todos os ex-comunistas e ex-esquerdistas marxistas-leninistas-maoístas que buscaram nele o seu ambicionado lugar ao sol.

No PS, encontraram muitos ex-comunistas quem, com espantosa generosidade, os acolhesse e conduzisse às suas ansiadas prebendas. Inexplicavelmente, porém, estes despachados náufragos do Comunismo, alguns deles subitamente elevados à condição de nababos administradores de Empresas ou Institutos Públicos, não perdoam aos que se filiaram em quadrantes políticos diversos, no PSD ou, pior ainda, na Direita, pura e dura, como acintosamente a adjectivam e onde frequentemente colocam também o PSD, com a complacência ou com a inconsciência deste, que sempre tem aceitado essa arbitrária arrumação política, a muitos títulos confusa e nociva para os demais agentes políticos.

Eis, pois, em traços largos, o que se me oferece dizer sobre o depoimento de Zita Seabra, no seu muito meritório livro «Foi Assim».

Este livro vem preencher um espaço que tem sido, estranhamente, pouco ocupado, no panorama editorial português, se atendermos ao já significativo número de militantes comunistas saídos do PCP, alguns deles com elevadas responsabilidades assumidas durante decénios no Partido, que, finalmente, abandonaram, embora escassamente criticando a sua doutrina, que hoje comummente se considera ter sido a maior e a mais trágica utopia política do século XX.

A calamidade causada pela utopia comunista terá de avaliar-se, não só pelo seu imenso número de vítimas, como pela amarga desilusão, quem sabe se irredimível, que o seu fracasso deixou em milhões de seres humanos, em todo o mundo, que, ingénua e sinceramente abraçaram um dia a formidável utopia, muitos deles, com toda a certeza, apenas movidos pela aparente beleza e presumida justeza dos seus ideais.

Passará certamente ainda muito tempo até que outra utopia volte a entusiasmar, de igual maneira, o velho coração humano, nunca, porém, definitivamente fechado a novos sinais de Esperança.

Confiemos em que, dessa vez, a produzir-se tal eventualidade, os chamados pensadores sociais, os intelectuais, gente da ciência e da cultura em geral, revelem maior lucidez nas suas análises do novo fenómeno, para que tantas destas vítimas inocentes não hajam sofrido em vão, nem outros, igualmente inocentes, venham a repetir tão inglório sofrimento.

AV - Óbidos, 07 de Agosto de 2007

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